Descrição
Esta orelha, como queiram, é muito mais que uma dobra ou um canto de contracapa, para onde os olhos vão quando invadem o livro. Esta orelha é uma escuta à voz do poeta que se expressa como palavra na alucinação do dia, buscando um lugar no fio telefônico dos postes, para estabelecer contato com a sua escuta, leitor. De orelha a orelha, a voz do poeta procura percorrer um espaço no campo aberto dos sentidos, que se nutrem do coloquialismo e da simplicidade da expressão para se verem livres e reivindicarem o que talvez a vida não possa: o hiato “entre o prato de feijão e o café coado”. Esse “entre”, esse intervalo que habita as coisas, ilude a transitoriedade da vida, para rasgar nela o verbo e, com o próprio poema, dizer tudo que sente diante de um “tempo mudo” e daquilo que falta.
Alucinar-se é lançar-se sem medo em meio às palavras todas e delas sugar o que o mundo oferece como prato feito e indigesto. E dos restos, nos versos que nascem, o desvairismo se alimenta. O poeta à escuta elabora, então, a sua cicuta.
Até onde vai a poesia hoje mergulhar para sentir-se viva na loucura de um mundo sem que o amor desbote ou coce o nariz diante de um “software de paisagens belas”? O amor, na poesia de Daniel, existe e sonha: “É a liberdade querida”. Parece que mesmo diante dos cães, imagem da distopia que irá percorrer o início e boa parte da obra, “todo mundo tem um clichê no coração”, como lemos neste livro. Diante da aparição do Amor, tudo se encanta e se reveste de cores e seres terreno-celestes. “Para voltar não tem hora / Tá chovendo lá fora”: os versos de “Aparição” me arriscam dizer que o romantismo, neste livro de Daniel, invade o sujeito alucinado porque a saída estaria no olho torto do Amor, que ainda resiste nesse mundo nada confortável que nos abriga, nesse mundo canino de cuja saliva o poeta ironicamente destila seus agentes políticos. O livro de Daniel Perroni Ratto uiva como um louco; seu “delírio é de estimação, é o cercado das lavras / Da vontade de existir”. Eis aquele que ama, como todo poeta, ainda, como um cão alucinado.
Susanna Busato é doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho, Mestre em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Tem pós-doutorado em Linguística (Semiótica) pela Universidade de São Paulo e atua como professora da Unesp de São José do Rio Preto. Poeta, publicou o livro de poemas Corpos em cena (Patuá, 2013), finalista do Prêmio Jabuti em 2014. Seus interesses recentes de pesquisa centram-se nas relações entre poesia e espaço urbano, com ênfase na poesia brasileira moderna e contemporânea
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